terça-feira, 21 de setembro de 2010

RESENHAS

LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTO
RESENHA

Avaliação e contabilização de impactos ambientais
Ademar Ribeiro Romeiro (org)Editora da Unicamp e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo1a edição, 2004Por Marta Kanashiro
Há muito se estabeleceu e predomina na relação homem/natureza, uma ordem na qual o segundo elemento está a serviço do primeiro e é encarado como algo a ser dominado, explorado ou vendido. Apesar da discordância de lideranças indígenas, intelectuais e ativistas, sobre a possibilidade de se atribuir valor econômico para a natureza, o que está em curso, em processo cada vez mais acelerado, é exatamente isso. A questão é inclusive entendida por muitos economistas e até ambientalistas como necessária para a defesa da natureza, o que transforma o mercado num lugar de justiça, pois entende-se e argumenta-se que o cálculo de valores é fundamental para reparar as agressões sofridas pelo meio ambiente, punir os agressores ou reparar as comunidades prejudicadas.
É nesse sentido que mensurar, monitorar e avaliar impactos sobre o meio ambiente é um tema cada vez mais discutido pela economia, que tem como algumas de suas preocupações recentes a criação e aperfeiçoamento de ferramentas e metodologias que possam contribuir para isso. Publicado no final de 2004, o livro Avaliação e contabilização de impactos ambientais, mostra bem essa preocupação dos economistas e traz um panorama das metodologias para avaliação, mensuração e monitoramento dos impactos ambientais. Os textos reunidos em suas 394 páginas foram apresentados no Seminário sobre Monitoramento e Avaliação Ambiental (Semaia), que ocorreu em 2001, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Segundo seu organizador, o economista Ademar Ribeiro Romeiro, o objetivo principal foi contribuir com a proposta do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de elaborar um conjunto de indicadores de sustentabilidade e um sistema de contabilidade econômica e ambiental (Sicea).
Além de discutir esses dois temas nas partes 3 e 4 do livro, os textos da primeira parte contemplam o monitoramento e avaliação de impactos sobre vegetação; biodiversidade local; qualidade da água; dos assentamentos rurais na Amazônia; do uso de agrotóxicos; da agropecuária; e trazem indicadores de processos de degradação do solo, desertificação e emissões de gases de efeito estufa. Já os textos da segunda parte, reservam-se à exploração da avaliação socioeconômica de impactos ambientais.
O livro como um todo se aproxima da linha teórica “economia ecológica”, uma das duas principais correntes teóricas da economia do meio ambiente. A introdução do livro, escrita por Romeiro, explica resumidamente essa linha e a conhecida como neoclássica ou economia ambiental, a qual se opõe.
De acordo com ele, a “economia ambiental” entende que os recursos naturais não representam um limite à expansão econômica, já que tais limites podem ser indefinidamente superados pelo progresso técnico. Nesse caso, são principalmente os mecanismos de mercado que garantem essa ampliação dos limites. Como exemplo, Romeiro aponta a possível escassez de determinado recurso (energético, por exemplo, que é transacionado no mercado), traduzindo-se em elevação de preço, na indução de inovações para poupá-lo e na substituição por outro recurso mais abundante. Por outro lado, quando o que está em jogo são recursos naturais coletivos, como a água, sua escassez não se traduz em elevação de preço, mas em “externalidade ambiental negativa”. A economia ambiental defende que, quando isso ocorre, o Estado deve intervir, definindo o direito de propriedade ou atribuindo valor aos recursos, para que o agente prejudicado possa ser compensado ou indenizado. As externalidades negativas são eliminadas quando o Estado cobra dos agentes poluidores taxas ou multas para possível recuperação ambiental.
Já a “economia ecológica” considera, segundo Romeiro, que o sistema econômico é um subsistema de um todo maior – o meio ambiente, que o contém, impondo restrição absoluta à sua expansão. O economista explica que, nesse sentido, capital e recursos naturais são complementares e o risco de perdas irreverssíveis é considerado relevante. Os indicadores de sustentabilidade têm como papel fundamental a determinação e avaliação de uma escala aceitável de degradação ambiental e, assim como o sistema de contas ambientais, fundamentam o processo de tomada de decisões, adoção de políticas ambientais e conscientização ecológica. Essa linha teórica considera eficientes os mecanismos de mercado para internalização dos impactos ambientais, mas não para impactos que atingem populações distantes ou gerações futuras. A conscientização ecológica tem papel decisivo para essa corrente, em especial nesses casos.
Apesar de amenizar a relação com o mercado, ambas as correntes apostam na utilização de seus instrumentos e em nenhum momento questionam a valoração econômica da natureza, muito pelo contrário. Por exemplo, “Valoração econômica dos serviços ambientais de florestas”, texto de Peter May que compõe a segunda parte do livro, chama atenção para a relação entre a valoração econômica e a conservação de recursos naturais. Para May, há um consenso emergente de que essa valoração pode apontar caminhos para a importância dos recursos para a sociedade. Os créditos de carbono são um exemplo de instrumento de mercado aplicado para reforçar a conservação.
O livro que propõe um panorama de metodologias acerca de avaliação e contabilização de impactos ambientais, também pode ser lido para questionar se ainda existe possibilidade de não transformar natureza em capital, aliás, um processo que está tão adiantado que é difícil acreditar na reversibilidade, contestação ou seu questionamento. Pessimismos a parte, Avaliação e contabilização de impactos ambientais pode ser de grande interesse para aqueles que desejam compreender o processo em curso


Resenha destinada à aula da disciplina: Leitura e Produção de Texto Prof. Sebastião Miguel Oliveira filho

Colapso – como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso
Jared DiamondEd. Record, 2005

Por Flávia Natércia

"Chassez le naturel, il revient au galop!" (Expulse o natural, ele volta a galope). A julgar por parte do discurso proferido sobre a mudança climática em curso, o aquecimento global, que fala de vingança ou revolta da natureza contra a artificialidade crescente do ambiente criado pelos seres humanos, o natural se reafirma com força por meio das catástrofes. Furacões, ciclones, tornados, inundações e secas mostrariam haver uma natureza "lá fora", de cujos ciclos o homem se faz vítima. No entanto, como Jared Diamond defende em Colapso, parece mais razoável pensar de outra forma: humanos, não-humanos, atmosfera, oceanos se integram num nível sistêmico, intrincado, complexo. É o fato que o efeito-estufa ilumina. Não há vingança, e sim, revelação definitiva da quase organicidade da relação do homem com o meio.
O "natural" é modificar o ambiente. Como bem frisou Richard Lewontin em A Tripla Hélice, qualquer espécie de ser vivo, ao utilizar recursos escassos do ambiente e devolvê-los em formas que não podem ser utilizadas novamente por indivíduos da própria espécie, está modificando o ambiente de forma "natural". Nada mais comum que comer, e nada mais ilustrativo da destruição micro-operada por cada célula viva: o metabolismo transforma comida em restos, produtos a serem excretados. No entanto, há algo de peculiar no "terceiro chimpanzé", o Homo sapiens, desde que ele "desenvolveu a inventividade, a eficiência e as habilidades de caçador há uns 50 mil anos".
A colonização humana de qualquer grande extensão de terra virgem sempre foi seguida de enorme impacto ambiental: derrubada de florestas, extinção de grandes animais "que evoluíram sem temer os seres humanos e foram facilmente abatidos, ou que sucumbiram à mudança de habitat, introdução de espécies daninhas e doenças trazidas pelo homem". A mesma história se repetiu na Austrália, na América do Norte, na América do Sul, em Madagascar, nas ilhas do Mediterrâneo, no Havaí, na Nova Zelândia e em diversas outras ilhas do Pacífico. Segundo o Diamond, descobertas recentes de arqueólogos, climatologistas, historiadores, paleontólogos e palinologistas (especialistas em pólen) têm confirmado a suspeita de suicídio ecológico (ecocídio) não-intencional por parte das sociedades que entraram em colapso.
As evidências de dano ambiental são alocadas pelo autor nas seguintes categorias, "cuja importância relativa difere de caso para caso: desmatamento e destruição do habitat, problemas com o solo (erosão, salinização e perda de fertilidade), problemas com o controle da água, sobrecaça, sobrepesca, efeitos da introdução de outras espécies sobre as espécies nativas e aumento per capita do impacto do crescimento demográfico." A esses processos, a sociedade industrial acrescentou mais quatro: "mudanças climáticas provocadas pelo homem, acúmulo de produtos químicos tóxicos no ambiente, carência de energia e utilização total da capacidade fotossintética do planeta".
Diamond adverte que a maioria dessas 12 ameaças se tornará crítica em âmbito mundial nas próximas décadas, o risco é crescente, e, caso não se implementem contra-medidas, teremos o mesmo destino da Somália e de Ruanda. Mas o autor não crê num cenário apocalíptico de extinção da humanidade ou da civilização industrial. "Tal colapso pode assumir diversas formas, como a disseminação mundial de doenças ou de guerras provocadas pela escassez de recursos naturais". Em sua "estrutura de cinco pontos" de possíveis fatores capazes de contribuir para um colapso, quatro - danos ambientais, mudança climática, vizinhança hostil e parceiros comerciais amistosos - "podem ou não se mostrar significativos para uma sociedade particular. O quinto fator - as respostas da sociedade aos seus problemas ambientais - sempre se mostrou significativo".
Muitas sociedades do passado, por exemplo, se depararam com os efeitos danosos do desmatamento. Diante do problema, "as sociedades das terras altas da Nova Guiné, Japão, Tikopia e Tonga desenvolveram um manejo florestal bem-sucedido e continuaram a prosperar, enquanto a ilha de Páscoa, Mangareva e a Groenlândia Nórdica não conseguiram um bom manejo florestal e, por isso, entraram em colapso". Os resultados foram diferentes, em parte, porque dependem dos valores culturais, dos interesses econômicos, da estrutura social e da organização política das sociedades, tornando-as mais ou menos dispostas, mais ou menos capazes de perceber a degradação e de tentar revertê-la. Não se pode, portanto, dizer que todas estejam fadadas ao fracasso devido à degradação ambiental, nem que ela seja integralmente responsável pelo seu destino. Mas, por outro lado, pode-se procurar compreender o que tornou algumas sociedades suscetíveis de desaparecimento físico e/ou cultural.
Nenhum agrupamento humano está livre da armadilha potencial de sobre-utilizar recursos ambientais. A princípio, eles parecem inesgotáveis e têm suas reduções muitas vezes mascaradas por oscilações normais ao longo dos anos. As aparências enganam. Depois, quando se mostram críticos os níveis do recurso em questão, é difícil fazer as pessoas mudarem de atitude. Além disso, "não nos esquecemos de nada, nós nos habituamos". As paisagens pelas quais passamos quotidianamente vão se alterando - surgem casas, prédios, lojas, academias, estacionamentos; árvores são derrubadas, flores são plantadas; postes, antenas de celular, fiações, luminosos se multiplicam. A questão é tão complexa, que desafia até os ecólogos profissionais. Se as mudanças se processam lentamente, correm o risco de passar despercebidas.
Diamond ressalta que "os problemas ambientais que hoje são difíceis de administrar certamente eram ainda mais difíceis no passado" e as sociedades que entraram em colapso nada tinham de estúpidas ou primitivas. Mas adverte que as diferenças entre o mundo moderno e as sociedades do passado impedem que soluções simples e diretamente transferíveis venham a ser extraídas do estudo. Temos hoje uma "poderosa tecnologia" e uma sociedade global, com tudo que isso tem de bom e ruim. A medicina moderna salva milhões de vida, e logo terá de salvar bilhões. A população mundial continua crescendo e ameaçando ultrapassar a capacidade de suporte da Terra. "Talvez ainda possamos aprender com o passado, mas apenas se avaliarmos cuidadosamente as suas lições".
Da mesma forma como desafiaram as sociedades do passado, os problemas ambientais colocam as sociedades atuais diante de escolhas e decisões que implicam o futuro do planeta e da humanidade. O pior é que, na melhor das hipóteses, as próximas futuras gerações já receberão um ambiente altamente degradado que deverá impor-lhes um padrão de vida inferior ao de seus progenitores. Um dos processos responsáveis é a salinização, um problema em diversos países: Estados Unidos, Índia, Turquia e Austrália, e que outrora favoreceu o declínio da Mesopotâmia, a mais antiga das civilizações, e faz da expressão "Crescente Fértil" "uma brincadeira de mau gosto". Somente em Montana, as estimativas do dano econômico direto causado por plantas daninhas ultrapassam os US$ 100 milhões por ano.
Colapso mostra que é sempre problemática e desafiadora a relação do homem com seu entorno, mas os islandeses e os habitantes de Tikopia, entre outros, "conseguiram resolver problemas ambientais muito complexos e puderam, assim, persistir durante um longo tempo, e ainda estão fortes atualmente". Os colonizadores noruegueses "inadvertidamente destruíram grande parte do solo da Islândia e a maioria de suas florestas", mas os islandeses acabaram aprendendo com a experiência e adotaram rigorosas medidas de proteção ambiental. Agora desfrutam de uma das rendas nacionais per capita mais altas do mundo. Os habitantes de Tikopia, que vivem muito longe até do vizinho mais próximo, tiveram de se tornar auto-suficientes em quase tudo; por meio de uma meticulosa administração de seus recursos e de um rigoroso controle do crescimento populacional, mantiveram sua ilha produtiva, mesmo após três mil anos de ocupação humana.
A ilha de Páscoa fornece o exemplo mais dramático do passado, de acordo com Diamond, o que há de mais próximo de "um desastre ecológico ocorrendo em completo isolamento". No lugar dos deuses astronautas de Erich Von Däniken, tudo indica que as gigantescas estátuas de pedra que até hoje recontam parte da história de seus habitantes foram obra humana, demasiado humana, de custo ambiental excessivamente alto. O resultado é que ficaram poucos pascoenses para contar a história e repovoar a ilha.
O isolamento de Páscoa faz dela o mais claro exemplo de uma sociedade que se destruiu por abusar de seus recursos. Além dos impactos ambientais humanos - sobretudo desmatamento e extinção das aves -, houve "os fatores políticos, sociais e religiosos por trás dos impactos": a impossibilidade da emigração como válvula de escape, o foco na construção de estátuas e a competição entre clãs e chefes induzindo a construção de estátuas cada vez maiores, requerendo mais madeira, mais cordas, mais alimentos. "Metáfora imperfeita" do futuro do planeta? O livro convida a refletir: "se alguns insulares usando apenas pedras como ferramentas e seus próprios músculos como fonte de energia conseguiram destruir o seu ambiente e, assim, destruir a sua sociedade, o que farão bilhões de pessoas com instrumentos de metal e com a energia das máquinas?".
Outros colapsos do passado analisados envolvem Mangareva, Pitcairn e Henderson, as únicas ilhas habitáveis do sudeste da Polinésia; os anasazis do sudoeste dos Estados Unidos; e seus vizinhos, os maias. Das sociedades contemporâneas, o livro se ocupa do genocídio de Ruanda (tema de filme recente); das diferenças entre a República Dominicana e o Haiti, países que compartilham da mesma ilha, Hispaniola; da China, "gigante cambaleante", cujo crescimento econômico explosivo tem acelerado a destruição do planeta; da Austrália, "que vem minando seus recursos renováveis como se fossem minerais" e sofrendo como poucos países com o fardo das espécies introduzidas que se tornam pragas.
Fica implícito, no que Diamond diz, que confiar em tecnologias capazes de salvar o mundo é uma abordagem temerária. Dentre as civilizações que entraram em colapso no passado e as que correm risco de entrar no presente, muitas dispõem de sofisticados aparatos tecnológicos para os padrões de seu tempo. Também não se deve esperar que as indústrias, as empresas de mineração, as madeireiras e o governo se comprometam a mudar de atitude: "nós, o público, temos a responsabilidade final".

Resenha destinada à aula de Leitura e Produção de Texto: Prof. Sebastião Miguel Oliveira filho

terça-feira, 14 de setembro de 2010

LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTO
Aula do dia 14/09/2010

No Meio do Caminho
Carlos Drummond de Andrade

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Poema de Sete Faces
Carlos Drummond de Andrade

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu
[coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos , raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo,
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
Gauche: termo francês, quer dizer torto, desajeitado
Compreensão

sábado, 4 de setembro de 2010

COESÃO E COERÊNCIA TEXTUAL

Mecanismos linguísticos que estabelecem a cocectividade e a retomada do que foi escrito
Professor: Sebastião Miguel Oliveira filho
Tanto na fala como na construção de um texto usamos mecanismos para garantir ao interlocutor a compreensão do que se lê. (referentes textuais). Eles garantem a coesão textual para que haja coerência.
A coerência está atrelada na composição desses elementos, afim de que se possa ser estabelica a sequência de orações dentro do texto

Coesão de modo implícito
Coesão baseado em conhecimentos anteriores que os participantes do processo têm com o tema. Por exemplo, o uso de uma determinada sigla, que para o público a quem se dirige deveria ser de conhecimento geral, evita que se lance mão de repetições inúteis.
Numa linguagem figurada, a coesão é uma linha imaginária - composta de termos e expressões - que une os diversos elementos do texto e busca estabelecer relações de sentido entre eles.
Dessa forma, com o emprego de diferentes procedimentos, sejam lexicais (repetição, substituição, associação), sejam gramaticais (emprego de pronomes, conjunções, numerais, elipses), constroem-se frases, orações, períodos, que irão apresentar o contexto – decorre daí a coerência textual.
Um texto incoerente é o que carece de sentido ou o apresenta de forma contraditória. Muitas vezes essa incoerência é resultado do mau uso daqueles elementos de coesão textual. Na organização de períodos e de parágrafos, um erro no emprego dos mecanismos gramaticais e lexicais prejudica o entendimento do texto. Construído com os elementos corretos, confere-se a ele uma unidade formal.
Nas palavras do mestre Evanildo Bechara, o enunciado não se constrói com um amontoado de palavras e orações. Elas se organizam segundo princípios gerais de dependência e independência sintática e semântica, recobertos por unidades melódicas e rítmicas que sedimentam estes princípios".
Desta lição, extrai-se que não se deve escrever frases ou textos desconexos – é imprescindível que haja uma unidade, ou seja, que essas frases estejam coesas e coerentes formando o texto.
Além disso, relembre-se que, por coesão, entende-se ligação, relação, nexo entre os elementos que compõem a estrutura textual.
Há diversas formas de se garantir a coesão entre os elementos de uma frase ou de um texto:
1. Substituição de palavras com o emprego de sinônimos ou de palavras ou expressões de mesmo campo associativo.
2. Nominalização – emprego alternativo entre um verbo, o substantivo ou o adjetivo correspondente (desgastar / desgaste / desgastante).
3. Repetição na ligação semântica dos termos, empregada como recurso estilístico de intenção articulatória, e não uma redundância - resultado da pobreza de vocabulário. Por exemplo, "Grande no pensamento, grande na ação, grande na glória, grande no infortúnio, ele morreu desconhecido e só." (Rocha Lima)
4. Uso de hipônimos – relação que se estabelece com base na maior especificidade do significado de um deles. Por exemplo, mesa (mais específico) e móvel (mais genérico).
5. Emprego de hiperônimos - relações de um termo de sentido mais amplo com outros de sentido mais específico. Por exemplo, felino está numa relação de hiperonímia com gato.
6. Substitutos universais, como os verbos vicários (ex.: Necessito viajar, porém só o
farei no ano vindouro) A coesão apoiada na gramática dá-se no uso de conectivos, como certos pronomes, certosadvérbios e expressões adverbiais, conjunções, elipses, entre outros.
A elipse se justifica quando, ao remeter a um enunciado anterior, a palavra elidida é facilmente identificável (Ex.: O jovem recolheu-se cedo. ... Sabia que ia necessitar de todas as suas forças. O termo o jovem deixa de ser repetido e, assim, estabelece a relação entre as duas orações.).
Dêiticos são elementos lingüísticos que têm a propriedade de fazer referência ao contexto situacional ou ao próprio discurso. Exercem, por excelência, essa função de progressão textual, dada sua característica: são elementos que não significam, apenas indicam, remetem aos componentes da situação comunicativa.
Já os componentes concentram em si a significação.
Elisa Guimarães (2) nos ensina a esse respeito:
"Os pronomes pessoais e as desinências verbais indicam os participantes do ato do discurso. Os pronomes demonstrativos, certas locuções prepositivas e adverbiais, bem como os advérbios de tempo, referenciam o momento da enunciação, podendo indicar simultaneidade, anterioridade ou posterioridade.
Assim: este, agora, hoje, neste momento (presente); ultimamente, recentemente, ontem, há alguns dias, antes de (pretérito); de agora em diante, no próximo ano, depois de (futuro)."
Esse conceito será de grande valia quando tratarmos do uso dos pronomes demonstrativos.
Somente a coesão, contudo, não é suficiente para que haja sentido no texto, esse é o papel da coerência, e coerência se relaciona intimamente a contexto.
Como nosso intuito nesta página é a apresentação de conceitos, sem aprofundá-los em demasia, bastam-nos essas informações.
EXERCÍCIO PARA AVALIAR A COMPETÊNCIA LEITORA DO ALUNO
Objetivo: entendimento do texto
Aponte o texto que pode ser considerado INCOERENTE:?

a) Cheguei atrasado para a sessão. Clara já havia comprado a pipoca. Estava nervosa batendo o pé sem parar. Quando ela me viu, bateu com os dedos com fúria no relógio para mostrar a sua indignação. Mas o filme era tão bom que essa raiva passou logo e pude sentir o seu rosto aninhado junto ao meu peito.
b) A vida de Jorge Damasceno pode ser considerada uma novela mexicana. Filho de empregada doméstica, só conheceu o pai aos vinte e cinco anos. O pai era porteiro do prédio em que Jorge trabalhava.
c) Como havia muita gente fumando, lá dentro a fumaça não deixava que víssemos ninguém. Meu colega foi à cozinha, deixando-me só. Fiquei encostado na parede da sala, observando as pessoas que lá estavam. Na festa, havia pessoas de todas as “tribos”: hippies, emos, punks, patricinhas, mauricinhos, etc.
d) A festa estava animadíssima, comes e bebes à vontade e uma banda ótima tocava músicas de todos os tipos. Dancei a noite inteira e fiquei conhecendo um gatinho lindo, o Marcus. Era um siamês, com certificado de procedência e tudo mais. Aquele pessoal era realmente muito rico.
4 meses atrás


quinta-feira, 2 de setembro de 2010

O FAZER LITERÁRIO

A literatura contra o efêmero

O ensaísta italiano fala sobre a permanência dos clássicos na era da realidade virtual
Para que serve a literatura? Eu poderia dizer que ela não serve para nada, mas uma visão tão crua do prazer literário corre o risco de igualar a literatura ao jogging ou às palavras cruzadas
Os grandes livros contribuíram para formar o mundo. A "Divina Comédia", de Dante, por exemplo, foi fundamental para a criação da língua e da nação italianas. Certos personagens e situações literárias oferecem liberdade na interpretação dos textos, outros se mostram imutáveis e nos ensinam a aceitar o destino.
Reza a lenda, e "se non è vera, è ben trovata", que certa vez Stálin perguntou quantas divisões tinha o papa. O que ocorreu nas décadas seguintes provou que, sem dúvida, as divisões são importantes em determinadas situações, mas não são tudo. Existem poderes imateriais cujo peso não se pode medir, mas que ainda assim pesam.
Estamos rodeados de poderes imateriais, que não se restringem aos chamados valores espirituais, como os das doutrinas religiosas. Também é um poder imaterial o das raízes quadradas, cuja rígida lei resiste aos séculos e aos decretos, não só de Stálin, mas do próprio papa. E entre esses poderes eu incluiria também o da tradição literária, isto é, do complexo de textos que a humanidade produziu e produz, não com fins práticos, mas "gratia sui", por amor a si mesma, e que são lidos por prazer, elevação espiritual ou para ampliar os conhecimentos.
É verdade que os objetos literários são imateriais em parte, pois geralmente encarnam em veículos de papel. Mas houve um tempo em que eles encarnavam na voz de quem recordava uma tradição oral, ou entalhados em pedra, e hoje estamos discutindo o futuro dos e-books.
Mas para que serve esse bem imaterial, a literatura? Eu poderia responder, como já fiz noutras vezes, dizendo que ela é um bem que se consuma "gratia sui" e que portanto não serve para nada. Mas uma visão tão crua do prazer literário corre o risco de igualar a literatura ao jogging ou às palavras cruzadas, que, além do mais, também servem para alguma coisa, seja manter o corpo saudável, seja enriquecer o léxico. Do que estou tentando falar é, portanto, da série de funções que a literatura tem na nossa vida individual e social. A literatura mantém a língua em exercício e, sobretudo, a mantém como patrimônio coletivo. A língua, por definição, vai para onde ela quer, nenhum decreto superior, nem político nem acadêmico, pode interromper seu caminho nem desviá-lo para situações que se pretendem ótimas. A língua vai para onde quer, mas é sensível às sugestões da literatura. Sem Dante não teria existido um italiano unificado. Dante, em "De Vulgari Eloquentia", analisa e condena os vários dialetos italianos, propondo-se a forjar uma nova língua vulgar ilustrada. Ninguém apostaria nada nesse gesto de soberba, mas, com a "Comédia", Dante ganhou o desafio. É verdade que vários séculos tiveram de passar para que o vulgar dantesco se tornasse uma língua falada por todos, e só o conseguiu porque a comunidade dos que acreditavam na literatura continuou a se inspirar naquele modelo. Sem esse modelo, talvez nem sequer tivesse vingado a idéia de uma unidade política. Mas a prática literária também mantém em exercício nossa língua individual. Hoje muitos lamentam o surgimento de uma linguagem neotelegráfica que se impõe por meio do correio eletrônico e das mensagens nos celulares, em que até para dizer "te amo" se usa uma sigla. Mas não esqueçamos que os jovens que trocam mensagens utilizando essa nova taquigrafia são, ao menos em parte, os mesmos que se apinham nas novas catedrais do livro, as megalivrarias, onde, mesmo que só folheando sem comprar, eles têm contato com estilos cultos e elaborados, aos quais não foram expostos nem seus pais nem seus avós.
A leitura das obras literárias obriga a um exercício de fidelidade e de respeito dentro da liberdade de interpretação. Há uma perigosa heresia crítica, típica dos dias de hoje, segundo a qual é possível fazer qualquer coisa com uma obra literária. Não é verdade. As obras literárias convidam à liberdade de interpretação porque propõem um discurso com muitos planos de leitura, defrontando-nos com a ambiguidade da linguagem e da vida.
Mas, para poder intervir nesse jogo, em que cada geração lê as obras literárias de um modo diferente, é preciso ter profundo respeito por aquilo que chamo a intenção do texto. No final do capítulo 35 de "O Vermelho e o Negro", diz-se que Julien Sorel vai à igreja e atira contra Madame de Rênal.
Tendo observado que o braço do protagonista tremia, Stendhal diz que Julien dá um primeiro tiro, mas erra o alvo, depois dá um segundo, e a senhora cai. É possível sustentar que o tremor de seu braço, acrescido do fato de errar o primeiro tiro, indicam que Julien não foi à igreja com um firme propósito homicida, mas antes movido por um confuso impulso passional.
A essa interpretação é possível contrapor outra: que Julien tinha desde o início a intenção de matar, mas era um covarde. A partitura autoriza ambas as interpretações. Alguém também pode perguntar onde foi parar a primeira bala, o que é uma boa dúvida para os devotos stendhalianos. Assim como os devotos de Joyce vão a Dublin para procurar a farmácia onde Bloom teria comprado um sabonete em forma de limão, podemos imaginar devotos stendhalianos tentando descobrir em que lugar do mundo fica Verrières e sua igreja, esquadrinhando todas as colunas do templo em busca do buraco daquela bala. Seria um episódio de fanatismo bastante divertido.
Mas suponhamos agora que um crítico pretenda basear toda sua interpretação do romance no destino da tal bala perdida. Nos tempos que correm, isso não é inverossímil, até porque houve quem baseasse toda a sua leitura de "A Carta Roubada", de Poe, na posição da carta em relação à lareira. Mas, se para Poe a posição da carta é explicitamente pertinente, Stendhal diz que nunca se soube mais nada daquela primeira bala, excluindo-a assim do conjunto de entidades fictícias. Sendo fiel ao texto stendhaliano, essa bala se perdeu definitivamente, e onde ela foi parar é irrelevante do ponto de vista narrativo. Por outro lado, o que se cala em "Armance" sobre a possível impotência do protagonista incita o leitor a tecer frenéticas hipóteses para completar aquilo que o relato não diz, ao passo que, em "Os Noivos", de Alessandro Manzoni, uma frase como "a desventurada respondeu" não diz até que ponto Gertrude levou seu pecado com Egidio, mas o halo escuro de hipóteses induzidas ao leitor aumenta o fascínio dessa página tão pudicamente elíptica. Para muitos, essas coisas poderão parecer obviedades, mas tais obviedades (muitas vezes esquecidas) confirmam o mundo da literatura como inspirador da fé na existência de certas proposições que não podem ser postas em dúvida, com o que ele oferece um modelo de verdade, ainda que imaginário.
Migração
Podemos fazer afirmações verdadeiras sobre personagens literários porque o que lhes acontece está registrado em um texto, e um texto é como uma partitura musical. É verdade que Anna Karenina se suicida, assim como é verdade que a "Quinta Sinfonia" de Beethoven foi escrita em dó menor (e não em fá maior, como a "Sexta") e se inicia com "sol, sol, sol, mi bemol". Mas certos personagens literários, não todos, acabam saindo do texto em que nasceram e migrando para uma região do universo muito difícil de delimitar.
Foram emigrando de texto em texto (e, por meio de várias adaptações, de livro para filme ou balé, ou da tradição oral para o livro) tanto personagens dos mitos como da narrativa "leiga": Ulisses, Jasão, o rei Artur ou Percival, Alice, Pinóquio, D'Artagnan. Mas, quando falamos de personagens desse tipo, referimo-nos a uma determinada partitura? Vejamos o caso de Chapeuzinho Vermelho. As duas versões mais célebres, a de Perrault e a dos irmãos Grimm, têm profundas diferenças. Na primeira, a menina é devorada pelo lobo, a história termina aí, inspirando portanto severas reflexões moralistas sobre os riscos da imprudência. Na segunda, aparece o caçador, que mata o lobo e devolve a vida à garota e à avó. Final feliz.
Pois bem, imaginemos uma mãe que conte a história para seus filhos e a encerre com o lobo devorando Chapeuzinho. As crianças protestariam e pediriam a "verdadeira" história, aquela em que Chapeuzinho ressuscita, e de nada valeria a mãe declarar ser uma filóloga estritamente ciosa das fontes literárias. As crianças conhecem uma história "verdadeira" em que Chapeuzinho de fato ressuscita, e essa história é mais afim à versão dos Grimm que à de Perrault.
Esses personagens se tornaram coletivamente verdadeiros, de certo modo, porque ao longo dos séculos a comunidade fez um investimento afetivo neles. Fazemos investimentos afetivos individuais em muitas fantasias que criamos nos nossos devaneios. Podemos realmente nos comover pensando na morte de uma pessoa amada, ou ter sensações físicas ao imaginar um contato erótico com essa pessoa. De modo semelhante, por meio de um processo de identificação ou de projeção, podemos nos comover com a sorte de Emma Bovary ou, como ocorreu com algumas gerações, sermos levados ao suicídio pelos sofrimentos de Werther ou de Jacopo Ortis. Mas, se alguém nos perguntasse se de fato morreu a pessoa cuja morte imaginamos, responderíamos que não, que foi apenas uma fantasia privadíssima. Contudo, se nos perguntassem se realmente Werther se matou, responderíamos que sim, e essa fantasia não é mais privada, mas uma realidade cultural com que toda a comunidade de leitores concorda. Tanto que julgaríamos louco quem se suicidasse por ter imaginado a morte da amada (sabendo que se trata de fruto de sua imaginação), ao passo que tentaríamos de algum modo justificar a atitude de quem se matasse por causa do suicídio de Werther, mesmo sabendo que se trata de um personagem fictício.
Teríamos então de encontrar a região do universo em que esses personagens vivem e determinam nosso comportamento, tanto que os tomamos como modelo de vida, própria e alheia, e entendemos muito bem quando se diz que alguém sofre de complexo de Édipo, tem uma fome de Pantagruel, um comportamento quixotesco, os ciúmes de um Otelo, uma dúvida hamletiana ou é um don Juan incorrigível. Contudo hoje há quem diga que também os personagens literários correm o risco de se tornar fugazes, mutáveis, inconstantes, de perder aquela fixidez que nos impedia negar seu destino. Entramos na era do hipertexto, e o hipertexto eletrônico nos permite não apenas viajar dentro de um novelo textual (seja uma enciclopédia inteira ou a obra completa de Shakespeare) sem necessariamente ter de "desenrolar" toda a informação que ele contém, penetrando-o como uma agulha de tricô num novelo de lã. Graças ao hipertexto, nasceu também a prática de uma escritura inventiva livre. Na Internet há programas para escrever histórias em grupo, em que os participantes tecem narrações cujos rumos podem ser modificados até o infinito. Pensem no seguinte: vocês leram "Guerra e Paz" com paixão, se perguntando se Natasha por fim cederia às lisonjas de Anatol, se o maravilhoso príncipe Andrea realmente morreria, se Pierre teria coragem de atirar em Napoleão, e agora vocês podem refazer seu Tolstói, dando a Andrea uma vida longa e feliz, transformando Pierre no libertador da Europa. E, muito mais, vocês podem reconciliar Emma Bovary, agora mãe feliz e pacificada, com seu pobre Charles; fazer Chapeuzinho Vermelho entrar no bosque e encontrar Pinóquio ou então ser raptada pela madrasta e obrigada a trabalhar com o nome de Cinderela para Scarlett O'Hara, ou então encontrar no bosque um mágico chamado Vladimir Propp, que lhe dá um anel encantado graças ao qual ela descobrirá, ao pé da bananeira sagrada dos tugues, o Aleph, aquele ponto de onde se vê todo o universo. E Anna Karenina não morrerá esmagada nos trilhos porque, sob o governo de Putin, os trens russos de bitola estreita funcionam pior do que os submarinos, enquanto longe, muito longe, além do espelho de Alice, Jorge Luis Borges lembra a Funes, o memorioso, que não se esqueça de devolver "Guerra e Paz" à biblioteca de Babel. Seria isso errado? Não, porque também a literatura já o fez, e antes dos hipertextos, com o projeto de "Le Livre", de Mallarmé, os cadáveres "exquis" dos surrealistas, os milhões de poemas de Queneau, os livros móveis da segunda vanguarda. Iuri Lotman, em "Cultura e Explosão", retoma a famosa recomendação de Tchecov segundo a qual, se no início de uma narração ou de um drama se mostra um fuzil pendurado na parede, antes do fim esse fuzil deverá disparar. Lotman dá a entender que o verdadeiro problema é se o fuzil realmente disparará. É justamente o fato de não saber se o fuzil disparará ou não que confere significância ao enredo. Ler uma história também é ser capturado por uma tensão, por um espasmo. Saber se no final o fuzil disparou ou deixou de disparar não tem o simples valor de uma notícia. É a descoberta de que as coisas aconteceram, e para sempre, de certo modo, à margem do desejo do leitor. O leitor deve aceitar essa frustração e, por meio dela, sentir o tremor ante o Destino. Se pudéssemos decidir o destino dos personagens, seria como ir ao balcão de uma agência de viagens: "Então, onde o senhor quer encontrar a Baleia, em Samoa ou nas Aleutas? E quando? Deseja matá-la o senhor mesmo ou deixa o serviço para Queequeg?". A verdadeira lição de "Moby Dick" é que a baleia vai para onde ela quer.
Pelos olhos de Deus.
Pensem na descrição que Hugo faz da batalha de Waterloo em "Os Miseráveis". Diferentemente de Stendhal, que descreve a batalha pelos olhos de Fabrizio, que está dentro dela e não entende o que está acontecendo, Hugo a descreve pelos olhos de Deus, vê a cena do alto: sabe que, se Napoleão soubesse que além da crista do Mont Saint-Jean havia um precipício (o que seu guia omitira), os couraceiros de Milhaud não teriam sucumbido aos pés do exército inglês; que, se o pastorzinho que guiava Bülow tivesse sugerido outro percurso, a esquadra prussiana não teria chegado a tempo de decidir a sorte da batalha.
Numa estrutura hipertextual, poderíamos reescrever a batalha de Waterloo fazendo com que os franceses de Grouchy chegassem antes dos alemães de Blücher, e já existem divertidos jogos de guerra que nos permitem fazer isso. Mas a trágica grandeza daquelas páginas de Hugo reside no fato de (à margem do nosso desejo) as coisas acontecerem como acontecem. A beleza de "Guerra e Paz" está em que a agonia do príncipe Andrea termine com a morte, por mais que essa morte nos desagrade.
A dolorosa maravilha que cada releitura de um grande clássico nos proporciona se deve a que seus heróis, que poderiam fugir de um fim atroz, por debilidade ou por cegueira, não entendem contra o que se debatem e se precipitam no abismo que cavaram com os próprios pés. Por outro lado, Hugo disse, depois de mostrar as oportunidades que Napoleão poderia ter aproveitado: "Era possível que Napoleão ganhasse essa batalha? A resposta é não. Por quê? Por causa de Wellington? Por causa de Blücher? Não. Por causa de Deus".
É isso o que dizem todas as grandes histórias, sendo possível, em todo caso, substituir Deus pelo destino ou pelas leis inexoráveis da vida. A função das narrativas imodificáveis é justamente essa: contrariando nosso desejo de mudar o destino, nos fazem experimentar a impossibilidade de mudá-lo. E assim, que seja a história que elas contem, contarão também a nossa, e é por isso que as lemos e as amamos. Necessitamos de sua severa lição "repressiva". A narrativa hipertextual pode educar para o exercício da criatividade e da liberdade. Isso é bom, mas não é tudo. As histórias "já feitas" nos ensinam também a morrer. Creio que essa educação para o fado e para a morte é uma das principais funções da literatura. Talvez existam outras, mas agora me escapam.